Em um cenário onde a inovação é celebrada e o "novo empresário" é aclamado como o motor do progresso, uma realidade sombria e preocupante se instala silenciosamente: o empreendedorismo está se precarizando, transformando muitos em meros "operários empreendedores". Essa regressão não é acidental, mas parece ser o resultado de um capitalismo que, longe de buscar a colaboração e a evolução, insiste em nos empurrar de volta a um modelo de senhores feudais urbanos e oligarquias empresariais.
O Berço da "Compliance" e a Ascensão da "Feitiçaria" Empresarial
As últimas décadas viram o surgimento de um discurso forte sobre ética, governança e responsabilidade social (ESG). O "novo empresário" parece ter nascido nesse berço da compliance, com acesso sem precedentes à informação e às ferramentas digitais. A expectativa era de uma era de negócios mais transparentes e conscientes.
No entanto, o que observamos é uma dissonância alarmante. A crítica é cruel, mas necessária: a prática da mentira, do engano e da "feitiçaria" empresarial prolifera. Esse termo, "feitiçaria", não é um exagero; ele descreve o uso deturpado do conhecimento e da verdade para fins maliciosos. É a manipulação sutil das informações para extrair vantagens indevidas, o marketing enganoso que mascara produtos e serviços duvidosos, a contabilidade "criativa" que oculta fragilidades e a cultura corporativa que incentiva a deslealdade sob a fachada de eficiência. Essa distorção é, em muitos casos, mais insidiosa e corrosiva do que a corrupção política aberta, minando a confiança na base da sociedade.
O acesso rápido à informação, que deveria ser um democratizador, torna-se uma arma nas mãos do oportunista. Ele não usa esse privilégio para inovar ou criar valor genuíno para a humanidade, mas para identificar e explorar as assimetrias de informação, especialmente entre a massa crítica e as populações de baixa renda, que carecem de meios para discernir o valor real ou ter acesso a alternativas justas.
O Empreendedor como Operário: A Tragédia da Precarização
Enquanto a elite do "novo empresário" age como oportunista, a base do ecossistema empreendedor sofre uma transformação ainda mais dolorosa. Milhões de indivíduos que se aventuram no empreendedorismo – do microempreendedor ao pequeno empresário – estão se tornando "operários empreendedores". Eles não são visionários que constroem impérios, mas pessoas presas em um ciclo vicioso de trabalho exaustivo com pouca recompensa e zero potencial de crescimento.
Este "operário empreendedor" vive assombrado, temeroso de fazer investimentos. Cada real é suado, e o risco de perdê-lo em um investimento incerto é paralisante. Ele consegue faturar um pouco mais do que um salário mínimo tradicional, mas esse "lucro" esconde a ausência de direitos trabalhistas, segurança e a sobrecarga de ser o único responsável por todas as áreas do negócio. Não há tempo para a estratégia, para a inovação, para o desenvolvimento de habilidades, apenas para a rotina extenuante.
Este não é um mundo que avança. É um mundo onde o sonho do empreendedorismo como caminho para a ascensão social se dilui em uma nova forma de precarização. A promessa de autonomia e riqueza se transforma em uma armadilha, onde o esforço hercúleo não resulta em progresso real, mas em uma subsistência precária.
A Pobreza Invisível nas Cidades Ostensivas: Nova York e Dubai
A crítica de que a pobreza se arrasta em Nova York e Dubai é crucial. Essas metrópoles, símbolos globais de riqueza e luxo, escondem uma realidade complexa de precarização. Em Nova York, o alto custo de vida esmaga a classe trabalhadora e pequenos empreendedores. Muitos lutam para sobreviver em um ambiente de aluguéis estratosféricos e concorrência voraz, onde a informalidade e a "gig economy" (economia de bicos) se tornam a única saída. A riqueza visível é, muitas vezes, construída sobre uma base de trabalho mal remunerado e sem segurança, uma forma moderna de servidão urbana.
Dubai, por sua vez, exibe uma modernidade deslumbrante, mas tem sido frequentemente criticada pelas condições de trabalho de seus imigrantes, que constroem a cidade em regime quase análogo à escravidão, com salários ínfimos e direitos limitados. A opulência dos arranha-céus contrasta drasticamente com a invisibilidade e a vulnerabilidade de grande parte da força de trabalho. Nesses centros, o "operário empreendedor" pode até existir, mas está preso em um ciclo de subsistência, sem acesso ao capital ou à infraestrutura que poderiam impulsionar seu crescimento real.
O Contraponto do Progresso Colaborativo e Sustentável: A Inteligência Tributária
Felizmente, nem tudo é um retrocesso. Existem modelos e iniciativas que demonstram que outro caminho é possível, onde o capitalismo pode (e deve) ser um agente de avanço e bem-estar.
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As Nações Nórdicas (Dinamarca, Suécia, Noruega, Finlândia): Esses países são consistentemente classificados entre os que possuem maior bem-estar social, altos IDHs (Índices de Desenvolvimento Humano) e economias robustas. Não se trata apenas de baixa carga tributária, mas de um modelo de capitalismo de bem-estar social que prioriza educação e saúde de alta qualidade universal, fortes investimentos em pesquisa e desenvolvimento, e um compromisso com a economia colaborativa e a sustentabilidade. A cultura de confiança e cooperação é um pilar, combatendo o "feitiço".
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Seul, Coreia do Sul: A "Cidade Compartilhada": Seul é um exemplo notável de como uma metrópole pode adotar a economia colaborativa como estratégia de desenvolvimento urbano. O governo de Seul incentiva ativamente projetos de compartilhamento em diversas áreas, otimizando recursos e criando novas oportunidades de negócios, fomentando a inovação social e fortalecendo o senso de comunidade.
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A Inteligência da Tributação Múltipla e o "Cashback" Fiscal: Países como Irlanda, Singapura, Suíça e Malta demonstram que é possível atrair investimentos e impulsionar o desenvolvimento através de sistemas tributários múltiplos e flexíveis. Essas nações aplicam uma engenharia fiscal sofisticada, oferecendo incentivos específicos para setores-chave como tecnologia, biotecnologia, serviços financeiros. A grande diferença, e um ponto crucial, é que mesmo em locais com cargas tributárias elevadas, como algumas nações europeias (Alemanha, França) e países nórdicos, o sistema muitas vezes funciona como um "cashback" de impostos. Isso significa que a alta arrecadação é devolvida à sociedade em forma de investimentos robustos em infraestrutura de ponta, pesquisa e desenvolvimento (com subsídios e deduções fiscais para empresas inovadoras), educação de qualidade, saúde universal e um forte sistema de seguridade social. Esse retorno não é apenas um benefício social, mas um incentivo indireto ao investimento no próprio país, criando um ciclo virtuoso onde impostos altos financiam um ambiente propício para o crescimento e a sustentabilidade, e não apenas para o lucro de poucos.
O Futuro em Jogo: Um Chamado à Consciência
A era atual exige uma reflexão profunda. Estamos permitindo que o ímpeto capitalista nos leve a um futuro de maior desigualdade e estagnação, onde a promessa de progresso é substituída pela lógica da exploração e do ganho rápido? O "novo empresário" tem a responsabilidade – e a oportunidade – de ser um agente de transformação positiva. Mas, para isso, precisa urgentemente abandonar o oportunismo, a "feitiçaria" e o medo de investir, e abraçar a verdadeira maestria: aquela que se constrói com integridade, propósito, visão de longo prazo e um compromisso inabalável com o futuro da sociedade.
Do contrário, a sociedade pagará um preço alto por essa nova "Idade Média" do empreendedorismo, onde o sonho se torna uma ilusão e o progresso se reverte em privilégio para poucos e precarização para muitos.